O Mito do Índio na Cultura Escolar

por Ottaviano de Fiore.

Umas quatro décadas atrás, ninguém menos que Jomo Keniata, “a lança chamejante do Kênia”, herói do povo kikuio, aluno de Malinowsky, autor de Aos Pés do Monte Kenia, um clássico da Antropologia, primeiro presidente livre de seu país, afirmou que a extirpação do clitóris das meninas kikuio é uma tradição com “profundo significado para nosso povo”.

Ele estava respondendo à indignação das feministas locais e internacionais que exigiam uma ação do estado contra este costume repudiado é óbvio pelos kikuios educados mas praticado pelo povão tradicionalista e seus líderes religiosos.

A resposta de Keniata foi uma afirmação radical do relativismo cultural: não podemos julgar os costumes dos “outros” porque a moral universal em nome da qual as feministas agitam suas bandeiras não existe – existem apenas morais culturais igualmente legítimas.

Keniata não foi um caso isolado na história das Ciências Sociais. Menos de uma década atrás, alguns antropólogos brasileiros afirmavam resolutos pelos jornais (Folha 6-4-08) que o infanticídio de gêmeos recém nascidos praticado por algumas tribos indígenas não deve ser vista como uma superstição atroz. Ela seria um ritual “dos outros” que deve ser “respeitado”. (A periculosidade mágica dos gêmeos é um tema universal das mitologias sul americanas).

Curiosamente, aqueles que acham que enterrar indiozinhos vivos é uma tradição cultural respeitável são os mesmos que acham que abandonar recém nascidos paulistas no lixo é crime hediondo. Ou seja, as “outras” culturas gozam de uma isenção moral que não concedemos à nossa.

O que nos leva à uma situação estranha: devido à esta isenção moral que concedemos às outras culturas, em nossas escolas é vedado ensinar que os índios, sendo tão humanos quanto nós, também cometem atrocidades. As quais por serem diversas das nossas não são por isso menos atrozes: em nossas escolas os índios são naturalmente benévolos, inocentes e devotados à consciência ambiental enquanto que nós somos malévolos, culpados e destruidores da Natureza.

Este conceito é em parte uma tentativa de desligar-se moralmente daquilo que nossos antepassados europeus fizeram aos povos americanos. Mas em parte é um re-emergir do antiquíssimo mito da Natureza como a “Boa Mãe”. O velho mito de Gaya recondicionado pelos românticos. O mito que gerou “Avatar”, uma das maiores bilheterias da história do Cinema – uma demonstração cabal do quanto estas crenças ainda possuem raízes profundas nas nações que se acreditam modernas.

Devido a este mito, desde o século XIX, nas narrativas dedicadas às massas, os povos tecnologicamente atrasados são sempre representados como detentores de conhecimentos espirituais e mágicos bem superiores aos da “Ciência Ocidental” (como se houvesse outra...) da qual o romantismo sempre desconfiou e continua a desconfiar.

Os livros didáticos entretanto vão além. Neles, os índios são mais ou menos regularmente retratados como humanamente superiores aos civilizados. É óbvio que a A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá de Florestan Fernandes (livro que inaugura a sociologia científica no Brasil), não é mais lido por ninguém. Os autores didáticos que veneram ritualmente a memória de Florestan ficariam estarrecidos se o lessem.

Aliás, ainda melhor do que estudar a guerra tupinambá é estudar os astecas. Suas guerras serviam principalmente para fazer prisioneiros em larguíssima escala (ler Reis e Canibais de Marvin Harris). Esses prisioneiros eram colocados em imensas filas que terminavam no templo da deusa do milho no centro de Tenotchitlan. Lá os sacerdotes arrancavam-lhe o coração vivo do peito. O coração, ‘alimento da deusa’, era incinerado e oscadáveres jogados escadaria abaixo.

A carne era para os nobres e sacerdotes, as vísceras para o povão (como sempre). Um fedor espantoso emanava dos arredores do templo, cercado por um mar de estacas, cada qual com oito cabeças humanas trespassadas pelas têmporas, em vários graus de decomposição. Isso sem falar das horrendas mutilações de prisioneiros e escravos, muito bem documentadas nas pinturas e baixos relevos astecas, maias e mochicas – não sendo portanto uma calunia dos espanhóis. Ou seja, o Marques de Sade ficaria encantado em viver como sacerdote no antigo México.

Quanto à sua consciência ambiental, os maias no seu apogeu destruíram mais da metade das florestas do Yucatan. Como os ocidentais, indianos e chineses, os mexicanos precisavam de terras para a agricultura. Infelizmente faltavam-lhes os grandes rios que anualmente recuperaram as terras esgotadas. Por isso eles simplesmente as abandonavam e se mudavam para terras virgens, expulsando e escravizando os nômades que as habitavam. Agiam, isto é, como qualquer outro povo das grandes civilizações agrícolas teria agido.

Mas os maias não eram astrônomos e matemáticos? Não utilizaram o número zero antes dos árabes? Claro. Assim como os europeus, chineses e indianos, cujas civilizações também fizeram grandes descobertas, produziram artes maravilhosas e se encharcavam de sangue humano.

Os mesmos espanhóis que se horrorizavam com os arredores do templo da deusa do milho estavam queimando vivos cristãos novos, herejes e bruxas nas praças de suas cidades. Apenas não os comiam – um desperdício diriam astecas e tupinambás. Três séculos antes, entretanto, os cruzados andaram comendo gente. Conta-se que Ricardo Coração de Leão comeu as maminhas de uma jovem infiel e gostou. Gente fina, os cavaleiros cristãos.

O fato é que nunca houve bons selvagens e maus civilizados, houve apenas homens. E os homens, infelizmente, têm a deplorável tendência a explorar outros homens sempre que possível. Em 1503, com a melhor das intenções, Isabel a católica decretou que só os índios antropófagos podiam ser escravizados. Imediatamente, os espanhóis passaram a declarar antropófagos todos os povos que encontravam.

Todavia, apesar desta má fé descarada, já existiam por aqui povos tão ou mais ferozes que os espanhóis. O mito fundador dos caduveus, os orgulhosos guerreiros do Pantanal, afirma que na criação do Mundo, um deus deu a eles o direito de explorar e oprimir as outras nações (ler Tristes Trópicos de Leví Strauss). Hitler cujo Deus era a Natureza segundo Darwin (e não a Natureza segundo Disney), sentia o mesmo que os caduveus.

itler. HoObviamente, as atrocidades praticadas pelos indígenas entre si não justificam as atrocidades dos europeus contra eles. Mas a opressão cruel dos indígenas pelos brancos não justifica inventar índios anteriores ao pecado original para enganar as crianças.

As reivindicações dos índios não precisam dessa alegação absurda para serem justas e Rondon não precisou dela para protegê-los. Protegeu-os porque eles fazem parte da Humanidade e são mais fracos que nós, motivos mais do que suficientes para defendê-los dos fazendeiros, garimpeiros, aventureiros e pilhadores.

Os livros didáticos, entretanto, em vez de expor a complexa e fascinante realidade institucional dos povos indígenas – as vezes bem mais interessante do que ficção científica – preferem difundir o mito do bom selvagem. Porque eles fazem isso?

Fazem-no em parte com a boa intenção de limpar a barra dos índios, tradicionalmente vistos pelos portugueses e espanhois como perigosos e traiçoeiros. Mas fazem-no principalmente como pretexto para culpara “Civilização Ocidental”.

Ora, eu não me considero minimamente culpado pelo que aconteceu com os índios e nem acho que meus filhos e vizinhos o sejam. Se uma senhora tupinambá que gostava de seus filhos e de suas amigas não pode ser culpada por comer os prisioneiros de sua família, não vejo porque minha mãe tenha de ser culpada pelas matanças de tupinambás muito anteriores ao seu nascimento.

Todas estas tapeações romântico-ideológicas são sempre interesseiras. No Oriente Médio a convicção de que os ocidentais representam uma “civilização culpada” serve para justificar teocracias obscurantistas. Na América Latina, ela é invocada pelos “etno-caceristas” andinos que desejam retirar os direitos políticos dos brancos.

Na África esta mitologia é difundida pelos demagogos que denunciam as campanhas de vacinação e a distribuição macissa de preservativos. São os mesmos políticos “tradicionalistas” que sustentam que a AID seria curável apenas pelas mandingas dos feiticeiros e que este vírus foi criado pela CIA para dizimar os africanos.

Na realidade, pelo contrário, os principais culpadospela terrível explosão da AIDS no sul da África foram os populistas que, para ganhar os votos do povo menos educado, incitavam-no contra os médicos “ocidentais” os quais, propositalmente, estariam espalhando a epidemia.Aliás, na onda melosa de banalidades que se seguiram à morte de Mandela, ninguém falou de seu importante papel no desmascaramento deste mito, espalhado por políticos de seu partido.

Note-se aliás que essa visão dos poderes da magia tradicional e da impotência da ciência não é necessariamente “de esquerda”. Já li um artigo de Jose Olavo de Carvalho – direita assumida – esnobando a meteorologia e insinuando que a dança da chuva dos indígenas poderia, de fato, fazer chover.

O que nunca é dito é que esta opinião de que somos uma civilização culpadaé uma defesa dos valores das sociedades tradicionais contra os valores da modernização – individualismo, racionalidade, laicidade, cientificidade. Valores que, aliás, já deixaram a muito tempo de ser apenas ocidentais (a não ser que o Japão, a China e a Índia sejam ocidentais). De fato, a fábula do bom selvagem é uma versão europeia da mais antiga das utopias regressivas – o mito universal da “Idade do Ouro”, cuja versão tupi é o da Terra Sem Mal (ler Helene Klastres).

Porque nossas escolas e o cinema impingem às crianças essa fábula social-disneyana, segundo a qual os indígenas não gostam de guerras, não oprimem as mulheres, não praticam infanticídios, nunca são traiçoeiros e vivem em comunhão harmoniosa com a natureza?

Ao contrário do que parece, esta afirmação edulcorada não tem por objetivo defender os indígenas que, insisto, precisam mesmo ser defendidos. Muito pelo contrário, ela prejudica objetivamente aqueles índígenas que lutam para livrar seus povos de tradições cruéis.

Prejudica-os porque ela parte do pressuposto absurdo de que todos os indígenas concordam com os horrores de suas culturas e ignora o fato de que muitas de suas famílias preferem defender suas crianças das superstições malévolas de seus antepassados. Superstições que recorrentemente ouvimos serem reverenciadas como uma sabedoria fora do nosso alcance.

Esta visão idílica dos índios não foi criada para defende-los. Seu objetivo real é condenar as sociedades modernas, filhas de uma suposta “degeneração” das culturas tradicionais que viveriam num suposto “comunismo primitivo”. Segundo essa patranha, os homens já foram bons, mas devido à ganância dos “civilizados” eles se tornaram maus. Trata-se da ideia mais idiota de Rousseau, um sujeito que, apesar de ter escrito muito lucidamente sobre pedagogia, abandonava seus filhos em orfanatos assim que eles nasciam. Não basta entender de pedagogia para educar os filhos – é necessário amá-los.

Torna-se portanto importante perguntar: porque esta descrição idílica dos selvagens, uma mentira deslavada que lhes tira toda a ambiguidade da condição humana, não incomoda os professores de nossos filhos? Porque eles acham que se trata de uma mentira para o bem.

A intenção pode até ser boa, mas o resultado só pode ser péssimo. As sociedades em processo de modernização abrigam iniquidades sem conta. Quem duvida disso? Mas apenas o conhecimento dos fatos permitirá mudar as coisas para melhor. Engabelar as crianças só serve para criar adultos ignorantes.

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