O Demiurgo

Caetano Veloso é preocupadíssimo com assuntos dos mais variados, de Filosofia à História, e sua casa é um centro de discussões de onde emana uma luz de aurora renascentista. Cae acha graça no meu modo de escrever como uma fábrica. Nossos diálogos são muito estranhos porque ele é um poeta, um dos maiores poetas brasileiros, com agudíssima informação, um prestidigitador, um demiurgo cujas referências estarão sempre localizadas no Brasil, na Bahia. Na querida Bahia. Eu sou um desintegrado, um indivíduo dissolvendo-se em cacos internacionais. Um escritor pop. Vejo Cae como um rei oriental, com abanos, corte, dengosidade baiana, registrando o mundo e as incríveis contradições da nossa época através desta peculiar posição. Caetano não tem crise de identificação, suas referências são nítidas e seguras, a Bahia mítica, tribal e mágica.

Gilberto Gil disse que é pela primeira vez que sente a música como um trabalho. Um trabalho cotidiano, um serviço de operário. Gil possui uma serenidade, uma tranqüilidade de quem realmente está em relação desalienada com o seu trabalho. Caminha para um ascetismo de dedicação integral para com a música, eu diria que o seu ser poético, todo seu sistema nervoso, tudo nele, se encaminha para um contínuo processo de crescimento e desalienação na simplicidade reencontrada. Ambos aprofundaram-se, estão em caminhos separados porém paralelos, muito mais simples, mais despojados do que na época do tropicalismo. Os dois estão navegando agora pelos desconhecidos mares do oceano aberto, em cujo horizonte a grande noite e a eterna aurora os espera. Na obra dos dois, cada vez mais diferenciada, profunda, e simples, sente-se o emanar de uma luz de aurora, renascença, esperança. Dentro da amargura atual, a obra dos dois, cada vez mais diferenciada, irradia uma vibração de bálsamo, uma inquietude fermentadora, indicando o caminho do oceano aberto, aquele de Nietzsche, aquele de Aurora.

Para além da incrível criatividade do nosso trabalho em conjunto, foi através destes dois iluminados baianos que eu conheci pela primeira vez um Brasil desconhecido para mim, um Brasil misterioso, doce, dengoso, cheio de riquezas míticas e humanas sem fim. Estranha aliança, deveras estranha, destes dois sóis da Bahia com um desintegrado produto industrial, eu, Jorge Mautner, pura negação permanente.

Quanto ao filme, foi uma viagem de prazer e agonia. Numa das cenas em que eu, Cae e um jovem chamado Upsi Luli sacrificamos a Dionisius oferecendo a ele nosso sangue, o sangue saiu muito aguado, e eu para salvar a situação, tentei consertar e disse: — "Eis, eis o nosso sangue como água". Mas não deu certo porque Caetano caiu na gargalhada com todo mundo. Aliás Caetano tem um nome artístico no filme: chama-se Caetano Veloso. Acumular as funções de diretor e ator foi uma experiência incrível e eu me senti um pouco Charlie Chaplin.

Macalé no filme canta uma estranha cantiga com letra minha que dura 8 minutos. É quase uma ária de ópera-candomblé. Nunca vi filme mais irônico do que este, e ao mesmo tempo com um élan de tragédia musical. Como os meus livros, o filme nada tem a ver com situações dramáticas, relacionamentos psicológicos dos personagens. O filme é uma farsa, uma fábula. Oh! La Fontaine, se as pessoas soubessem como você é atual!

Leilah Assumpção está magnífica em seu papel de Cassandra, e Dedé tem uma longa cena de namoro com Caetano Veloso ao som de "Coração Vagabundo". O filme é a fusão de quatro influências: expressionismo alemão, Godard, Glauber, pop americana. E um quinto elemento tropicalmente brasileiro de chanchada.

Claro que o filme é muito mais como tudo é sempre muito mais. O filme é denso, profundo, aterrorizante. Há uma nostalgia romântica a pairar por cima do filme, e acho que ele é algo muito novo.

Caetano participou da montagem, Gilberto Macedo foi a peça principal. Agradeço a todos que me tiraram da lama, e espero que todos vocês leitores d’O PASQUIM assistam ao filme.

Um dia eu li O PASQUIM pelas ruas de New York em meio a uma tempestade de neve. Como este mundo é estranho!

 

Jorge Mautner (Pasquim, 10/6/1971)

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